O Abuso de Medicação Psiquiátrica na Atualidade

Autor: Hayslam Nicacio

Nos últimos anos, o uso de medicamentos psiquiátricos cresceu de forma expressiva. Substâncias como ansiolíticos, antidepressivos e estabilizadores de humor, antes prescritas com cautela para casos específicos, tornaram-se cada vez mais presentes no cotidiano de muitas pessoas. Embora esses medicamentos sejam importantes no tratamento de transtornos mentais, o uso indiscriminado e, em muitos casos, sem o devido acompanhamento médico, levanta uma questão preocupante: o abuso da medicação psiquiátrica.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) tem alertado sobre o crescimento da prescrição de antidepressivos, ansiolíticos e antipsicóticos. Segundo um relatório de 2021, cerca de 1 em cada 10 pessoas em países de alta renda faz uso de antidepressivos, um aumento significativo comparado a uma década atrás. No Brasil, estima-se que mais de 10% da população adulta utiliza algum tipo de medicamento psiquiátrico. A Anvisa registrou um aumento de 76% no consumo de ansiolíticos entre 2014 e 2020. Nos Estados Unidos, cerca de 13% dos adultos usam antidepressivos, segundo o CDC (2020).

A pandemia de COVID-19 exacerbou problemas de saúde mental, levando a um aumento das receitas de medicações psiquiátricas. Estudos apontam que durante o período de isolamento social, o uso de antidepressivos cresceu 50% entre os brasileiros. Essa situação revela não apenas um aumento na demanda por tratamento, mas também uma possível vulnerabilidade em relação ao uso excessivo desses medicamentos.

A facilidade de acesso a essas drogas é um dos fatores centrais dessa questão. Muitos pacientes conseguem receitas sem uma avaliação profunda, e há quem compartilhe medicações com amigos ou familiares, como se fossem soluções rápidas para estresse, tristeza ou insônia. Esse comportamento ignora os riscos reais, como dependência, efeitos colaterais graves e a piora do quadro clínico a longo prazo.

Um dos maiores problemas é o uso excessivo de benzodiazepínicos (como alprazolam e clonazepam), que causam dependência física e psicológica. Estudos apontam que 30% dos usuários de benzodiazepínicos desenvolvem uso prolongado, muitas vezes sem acompanhamento médico adequado. Além disso, há uma tendência de automedicação, especialmente entre jovens e adultos sob pressão acadêmica ou profissional.

Fatores que contribuem para o abuso

1. Medicalização do sofrimento humano: Problemas cotidianos, como estresse e tristeza, são frequentemente tratados como doenças, levando à prescrição excessiva de medicamentos.
2. Influência da indústria farmacêutica: O marketing agressivo de laboratórios contribui para a banalização de psicofármacos, muitas vezes minimizando seus riscos.
3. Falta de acesso a tratamentos alternativos: A escassez de terapias psicológicas no SUS e em planos de saúde faz com que a medicação seja a única opção para muitos pacientes.

O abuso de psicotrópicos pode levar a efeitos colaterais graves, como dependência, comprometimento cognitivo e até overdose. Além disso, mascara problemas sociais e emocionais que exigiriam intervenções mais amplas, como mudanças no estilo de vida e suporte psicossocial.

Outro aspecto relevante é a falta de acompanhamento adequado por profissionais de saúde. Muitas vezes, pacientes iniciam o tratamento com medicamentos sem um monitoramento contínuo, o que pode resultar em desvio das dosagens prescritas ou até mesmo na interrupção abrupta do tratamento. A não adesão ao tratamento e a substituição por medicações de venda controlada sem supervisão médica contribuem para o ciclo vicioso do abuso.

Existe também uma tendência cultural de medicalizar sentimentos comuns da experiência humana. Tristeza, ansiedade e frustração, que fazem parte da vida, estão sendo tratadas como doenças a serem eliminadas com comprimidos. Essa medicalização banaliza o sofrimento psíquico e impede o desenvolvimento de estratégias saudáveis de enfrentamento, como a terapia, a prática de atividades físicas e o fortalecimento de vínculos sociais.

No excelente livro “Nação Dopamina: Por que o excesso de prazer está nos deixando infelizes e o que podemos fazer para mudar”, da Dra. Anna Lembke, ela menciona o caso de uma paciente que vale a pena transcrever:

“Ao longo dos anos, tive muitos pacientes que me contaram que seus medicamentos psiquiátricos, embora oferecessem alívio a curto prazo para suas emoções dolorosas, também limitavam sua capacidade de experienciar uma série de emoções, especialmente as mais fortes, como luto e maravilhamento. Uma paciente, que parecia estar se dando bem com antidepressivos, disse que já não chorava nos comerciais das Olimpíadas. Contou isso rindo, privando-se com alegria do lado sentimental da sua personalidade, pelo alívio da depressão e ansiedade. Mas quando não conseguiu chorar nem no enterro da própria mãe (…) Largou os antidepressivos e pouco tempo depois vivenciou uma amplitude emocional maior, inclusive mais depressão e ansiedade. Decidiu que os baixos valiam a pena para se sentir humana”.

Por fim, o abuso de medicação também reflete a precarização do cuidado em saúde mental. Em vez de oferecer acompanhamento psicológico contínuo e multiprofissional, o sistema muitas vezes recorre à medicação como solução rápida e barata. Isso é ainda mais evidente em contextos de vulnerabilidade social, onde o acesso a psicoterapia é limitado. (Análise demográfica e socioeconômica do uso e do acesso a medicamentos antidepressivos no Brasil, 2021)

Na Suécia, um estudo nacional analisou proporções de prescrição para diferentes drogas psiquiátricas, baseado em índices do que chamaram de “privação da área” (índice de educação, renda, desemprego e assistência social). Para cada classe de medicamento psiquiátrico, foi descoberto que a prescrição aumentava conforme a situação socioeconômica da região caía. A conclusão a que chegaram: “Essas descobertas sugerem que a carência da região está associada à prescrição de medicamentos psiquiátricos”. (Neighborhood Deprivation and Psychiatric Medication Prescription: A Swedish National Multilevel Study”, Annals of Epidemiology, 21, n. 4 (2011): 231-37)

Diante desse cenário, é urgente repensar a forma como lidamos com o sofrimento mental e como usamos os recursos da psiquiatria. O medicamento deve ser uma ferramenta, não um substituto para o cuidado integral. O uso consciente e bem orientado é fundamental para garantir que essas substâncias cumpram seu papel: ajudar, e não aprisionar.

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Dra. Carla Barros

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